A corrida

Crédito: globoesporte.com
Eram meus quinze anos de idade. Eu estava acima do peso. Apesar de ter praticado capoeira e jogar futebol regularmente, a boca não parava de comer na mesma medida em que o corpo se movimentava. A boca respondia ao desejo fétido do fast-food. Pastéis, guloseimas, hambúrgueres e cachorros-quentes um atrás do outro colocava em xeque a ideia de uma vida saudável. Para saber o quanto é importante a saúde é necessário, em algum momento, sentir a sua ausência. Sentir a falta de algo mostra a sua importância mais do que a sua presença. O quando não está é mais sentido do que o quanto lá está.

O preço que se paga pela ausência de algo é maior do que a virtude de apreciar a sua presença. Imagine quando se percebe a ausência de vida, em vida, e o preço que se paga pelo tempo que não volta, o tempo jogado fora. E como o tempo não pode voltar, parece lógico a expressão “correr atrás do tempo”. Mas não é. O tempo que se perde não se recupera e o que se corre pra recuperar, se antes corresse quando não o havia perdido, no momento que reconhecesse a necessidade de correr, já se estaria muito mais distante. Melhor do que correr atrás do tempo é correr ao lado do tempo. O tempo é indiferente. Não há nada tão justo quanto o tempo. O tempo chega a todos e ninguém muda o tempo. Ele é o que é e nada há o que se fazer ou falar sobre isso, apenas aceitar que ele não se controla, vivendo em função de administrá-lo e não modifica-lo.

- Você precisa fazer algo! Sua situação é preocupante.

Disse o Dr. Joaquim (que descanse em paz) naquele dia. Já naquele tempo eu não aguentava dentro de mim o erro da alimentação. Não fazia sentido estar daquele jeito. Aonde estava era resultado de minhas escolhas. Depois de um receituário previsto, sabia que algo precisava ser feito. Mas antes era necessário ter consciência da origem do problema que enfrentava. O Dr. Joaquim expressou a indignação com as consequências, tratou os sintomas, mas só eu seria capaz de saber as causas. Eu me habito, afinal de contas.

Da superação do desleixo e da preguiça, eu fui correr – e na corrida encontrei a resposta. Com o suor no rosto, completei míseros um quilômetro. Foi de dar vergonha. Voltei andando o quilometro que corri, mas a determinação era grande e no outro dia eu corri um quilômetro e 100 metros, no outro dia mais 200, depois 300, até que hoje cheguei a 10 km. Dia após dia, continuei correndo, continuei progredindo. Já estava correndo dois quilômetros em menos de 3 meses. 

O tempo não era nem importante, era necessário correr apenas. Eu tinha que correr! Eu ia encontrar o ritmo em algum momento. Só importava dar o passo e depois continuar com a passada. Até que passada após passada eu fui encontrando o ritmo – cada vez que mais próximo do ritmo chegava, mais capaz de ser veloz eu estava e mais veloz eu corria. E fui correndo. Do lado de cá a alimentação ótima, do outro os passos iam se acertando. Na medida que iam acertando os passos, a vida ia se acertando na velocidade da corrida.

Dia e noite, noite e dia, passava eu pelo mesmo percurso. Quando noite, o espetáculo monótono das luzes dos postes refletiam sobre o meu rosto e a listra da pista pintada de branco me hipnotizava com sua teimosia repetitiva; quando dia o vento e o sol no rosto davam a consciência de que corria em direção a luz.

Os passos, um após o outro, me faziam apenas perder a consciência de tudo ao redor, só a corrida importava. A corrida pela corrida. Um prazer em si mesmo. A morada do meu interior se encontrava nos 150 batimentos cardíacos por minuto e a respiração ofegante que seguia só me deixava mais centrado – olhava pra onde queria chegar e sabia que em certos momentos não haveria uma outra alternativa para chegar onde desejava que não fosse só coração e pulmão.

Depois de calejado com a teimosa repetitividade da corrida, o corpo obedecia a mente, a minha motivação me movia até o fim da linha. O cansaço que chegava dava a certeza que para continuar era necessário coração, garra. Às vezes você só tem o seu pulmão e seu coração pra seguir em frente, e mais nada.

Aprendi a me ver correndo. Aquilo me dava uma sensação de introspecção. Sentir meu pulmão funcionando, a estrada meticulosamente se repetindo, o olhar focado, a motivação, a finalidade por estar correndo me fizeram tornar a corrida um ritual muito além da própria corrida.

Quando eu termino uma corrida eu me sinto diferente, eu sinto como se eu tivesse me vencido em algum aspecto. Não corri contra ninguém. Apenas corri. E correndo fui vencendo as barreiras, passo a passo.

Aprendi que atingir a linha de chegada não se dá apenas com um passo, mas com vários, no ritmo correto – que se acha no caminho. Mas tenho a certeza que basta um passo frente para estar um passo a menos da linha de chegada.

E toda vez que eu me pego em uma frustração, toda vez que encaro uma possível encruzilhada, eu corro. Não corro da situação, da frustração. Eu corro pra saber que a jornada é uma corrida, de vários passos. Que eu preciso continuar passada após passada e que não posso deixar meu pulmão falhar, meu coração falhar, eu mantenho minha força na mente, nos meus sonhos.

Corro no ritmo dos passos e na paciência da passada vou me achando no meio da jornada. O trajeto ensina. Sou eu quem corro.

Mas quando eu sempre fecho os olhos na corrida eu vejo meu pai do meu lado: vai, filho! Vai cara! Você consegue! Não para! Força! Mantém o ritmo!

Eu fecho os olhos de novo e vejo minha mãe: você vai conseguir! A vejo estender a mão e falar: toma essa água, filho. É a água na garrafa que estou bebendo e que ela fez questão de encher pra mim com todo o amor antes de correr.

A vida é uma corrida feita de passos. Quem anda não consegue chegar a tempo, quem corre demais cansa e para no meio. Encontre o seu ritmo, sue bastante e saiba que existem pessoas que estão do seu lado. Mas também saiba que a perna é sua, ninguém corre por você.

Mas eu não me permito parar de correr, não paro de jeito nenhum. Se for chorar, choro correndo. Eu aprendi a amar o trajeto e não a linha de chegada. E correndo eu vou, passo a passo, consciente de que a vida é uma corrida e chega quem não para e não quem é mais rápido. Vence quem, portando seu coração e seu pulmão, corta o vento com os braços e quebra a parede de ar com as próprias pernas.

Assim como na corrida, tudo em vida passa por um processo semelhante. Parece haver um consenso de que só o resultado pelo esforço compensa nessa vida.
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